terça-feira, 30 de outubro de 2012

Tempo seco



                
-Ele veio para cá ainda mais cedo depois da bebedeira. Tenho certeza de que não se afastou para muito longe, aposto que buscou algum lugar mais escuro para dormir e desfazer-se da culpa.
                -Culpa?
               -Sim, ele brigou com várias pessoas hoje à noite, além disto, cometeu sérios tipos de impropérios. Disse que os maconheiros da USP deviam ser todos enforcados e mereciam ter apanhado da polícia.
                -Mas eles mereciam mesmo.
                -Este tipo de coisa não se diz a torto e a direito por ai. Ninguém está nem ai para a sua opinião a não ser que ela seja totalmente irrelevante.  É por isso que o único assunto na moda hoje em dia é falar sobre arte e mais arte.
                -A sua opinião sobre arte que é irrelevante.

Continuamos andando por dentre a escuridão da madrugada, os nossos braços entrelaçados uns nos outros e as mãos apertadas tremendo de frio e de medo. Nesta hora da noite é sempre bom ter medo, mesmo que toda a cidade estivesse dormindo como uma criança. Uma vez uma pessoa me disse que São Paulo era uma cidade que nunca dormia, acho que Madrid era assim também, a pessoa que me disse isso era tão ignorante que nem sabia falar direito o nome da cidade.  Não faz diferença no final, não muda o fato que acho ridículo uma cidade não dormir. A sensação de que a vida não irá recomeçar é angustiante, somente é reconfortável para quem tem a cabeça muito afastada do pescoço, aquele tipo de pessoa fascinante e nem um pouco confiável.

-Você está muito apressado. Eu comprei este salto ainda ontem, ele está me machucando os pés.
-Isso que dá passar boa parte do tempo andando como um homem. Vestindo tênis e calças jeans soltas. Quando se quer voltar a ser mulher, o seu corpo não aceita fácil.
-Você tem sempre uma teoria idiota sobre tudo. Sempre uma opinião desleixada e ambígua que não esconde o fato de não ter nada a dizer.
-Se não tenho nada a dizer então porque ainda conversa comigo?
-Eu gosto de você, beija bem e é carinhoso. Além disso, é fiel aos seus amigos, por quais outros motivos estaríamos andando no centro de madrugada procurando um bêbado?
-Ele me deve dinheiro.
-Mentiroso.

Chegamos bem perto do que parecia ser uma boate gay daquelas de mais baixo nível. Estar entre os gays sempre me deixou pra cima, minha vontade era de chegar e pegar um deles de jeito, mas nunca tive coragem ou até mesmo ânimo. A melhor forma de não se entediar com uma coisa é não se aproximar dela demais, deixando-as no campo da expectativa elas continuavam mais coloridas. Pra falar a verdade, sempre fui fascinado por gays porque sempre me dei mal com as mulheres, tão instáveis e irresponsáveis, muito parecidas com minha mãe.
Meu amigo só poderia estar lá dentro. Eles abaixavam muito o som nesta hora da noite, como uma forma de gradualmente esvaziar a casa. Quem é bom bebedor sabe que esta é a melhor hora para secar cervejas com tranqüilidade, a música é suave, sem muitos daqueles efeitos e não tem tanta gente em volta para ficar te olhando desconfiado. Seria o lugar perfeito para terminar uma noite mal sucedida.
-Aqui.
-Aqui?
-Sim, aqui.

Ela não respondeu, nem se atreveu a confirmar com a cabeça. Com certeza achou péssima idéia entrar naquele lugar e pagar ainda uns 10 paus para o veado de terno e gravata, com uma arma na cintura. Naquela época ninguém tinha grana pra nada, e se você trabalhava com arte ai é que você não tinha nada mesmo, a parte mais interessante de mexer com esse tipo de coisa é que você nunca tem dinheiro para pagar o que produz.
 Lá de fora eu já conseguia ver o meu amigo sentado em um sofá encardido no canto inferior da sala, eu até que evitaria entrar se já não tivesse pagado os 10 reais que guardei para voltar de taxi para casa.   
-E ai?
-Beleza?
-Tranqüilo.
Sentamos ao mesmo tempo um de cada lado. Meu amigo sentiu-se desconfortável por um bom tempo com a situação, mas logo ficou como se não tivesse ninguém além dele no recinto. Um casal de homens rodava no saguão ao som de alguma merda dos anos 70, eu dançava isso quando era mais novo, hoje eu só vou para as festas se for pra beber.
-Eu fodi com tudo não foi?
-Bem, ela não vai falar com você por um bom tempo, mas isso não quer dizer nada.
-Eu a amava. Sabia?
-Você não ama ninguém desde que escolheu ser psicanalista.
-Eu não escolhi ser psicanalista e nem alcoólatra.

Ele estava certo, este tipo de situação acontece com você somente quando se menos espera. Uma vez ouvi falar que existem tipos de câncer que chegam pelos genes, tipo informações erradas que estavam já escritas na sua fórmula básica desde quando ainda era um feto. Somente alguém com um gene desse pode ser errado o suficiente para se tornar um bom psicanalista, o alcoolismo, bem, este vinha de brinde e era o que dava o charme da coisa.
-Eles já estão fechando e vão nos expulsar daqui a pouco.
-Vocês podem beber só mais uma comigo? Prometo que logo depois dessa eu vou embora pra casa.
-E você vai embora como? Porque não fica em nossa casa, temos espaço na sala e um colchão embaixo do sofá.
-Eu tenho medo que o seu gato me fure os olhos enquanto durmo. Eu li algo parecido com isso em um texto do Freud e vivo assustado desde então.
-Nós podemos ficar somente parados no meio da rua esperando o sol amanhecer, e alguma padaria abrir. Já é bem mais tarde do que parece.
-Cara. Muito obrigado. Vamos embora daqui.

Levantou sem muita dificuldade e foi direto ao caixa disposto a pagar não somente sua conta como nossas entradas. Ela foi logo atrás mancando em um pé só e tentando impedir que pagasse nossa parte, se os dois estivessem juntos até que dariam um bom par, eu então usaria o sofrimento da separação para me tornar um escritor com maior peso em minhas obras ou um bêbado bem elegante. O ciúme é a acidez do vinho, o tanino é o gosto da rotina.
Lá fora o sol já nascia bem devagar, os barulhos dos carros haviam cessado por completo. Dezenas de pequenos periquitos verdes como as folhas se escondiam por entre as árvores, denunciando sua presença com o seu canto desengonçado. Uma pessoa treinava alguns acordes tristes em um violão perdido entre os prédios. Enquanto isso, meu amigo andava a frente catando os pedaços de vida que os raios solares depositavam sobre as ruas, eu e ela andávamos mais atrás os ombros colados um no outro.
-Você me devia um nascer do sol.
-O sol devia um destes para todos nós.
Às 6 horas da manhã, meu amigo e nós brincávamos de gente grande nas avenidas de Goiânia. Os primeiros carros começavam a aparecer anunciando que o  novo dia seria quente, seco e indiferente.
Para Eloy San Carlo. 


Diego Roberto de Lima

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