-Ele veio para cá ainda mais cedo depois da bebedeira.
Tenho certeza de que não se afastou para muito longe, aposto que buscou algum
lugar mais escuro para dormir e desfazer-se da culpa.
-Culpa?
-Sim,
ele brigou com várias pessoas hoje à noite, além disto, cometeu sérios tipos de
impropérios. Disse que os maconheiros da USP deviam ser todos enforcados e
mereciam ter apanhado da polícia.
-Mas eles mereciam mesmo.
-Este tipo de coisa não se diz a torto e a direito por ai. Ninguém está nem ai
para a sua opinião a não ser que ela seja totalmente irrelevante. É por
isso que o único assunto na moda hoje em dia é falar sobre arte e mais arte.
-A sua opinião sobre arte que é irrelevante.
Continuamos andando por
dentre a escuridão da madrugada, os nossos braços entrelaçados uns nos outros e
as mãos apertadas tremendo de frio e de medo. Nesta hora da noite é sempre bom
ter medo, mesmo que toda a cidade estivesse dormindo como uma criança. Uma vez
uma pessoa me disse que São Paulo era uma cidade que nunca dormia, acho que
Madrid era assim também, a pessoa que me disse isso era tão ignorante que nem
sabia falar direito o nome da cidade. Não faz diferença no final, não
muda o fato que acho ridículo uma cidade não dormir. A sensação de que a vida
não irá recomeçar é angustiante, somente é reconfortável para quem tem a cabeça
muito afastada do pescoço, aquele tipo de pessoa fascinante e nem um pouco
confiável.
-Você está muito
apressado. Eu comprei este salto ainda ontem, ele está me machucando os pés.
-Isso que dá passar boa
parte do tempo andando como um homem. Vestindo tênis e calças jeans soltas.
Quando se quer voltar a ser mulher, o seu corpo não aceita fácil.
-Você tem sempre uma
teoria idiota sobre tudo. Sempre uma opinião desleixada e ambígua que não
esconde o fato de não ter nada a dizer.
-Se não tenho nada a
dizer então porque ainda conversa comigo?
-Eu gosto de você, beija
bem e é carinhoso. Além disso, é fiel aos seus amigos, por quais outros motivos
estaríamos andando no centro de madrugada procurando um bêbado?
-Ele me deve dinheiro.
-Mentiroso.
Chegamos bem perto do
que parecia ser uma boate gay daquelas de mais baixo nível. Estar entre os gays
sempre me deixou pra cima, minha vontade era de chegar e pegar um deles de
jeito, mas nunca tive coragem ou até mesmo ânimo. A melhor forma de não se
entediar com uma coisa é não se aproximar dela demais, deixando-as no campo da
expectativa elas continuavam mais coloridas. Pra falar a verdade, sempre fui
fascinado por gays porque sempre me dei mal com as mulheres, tão instáveis e
irresponsáveis, muito parecidas com minha mãe.
Meu amigo só poderia
estar lá dentro. Eles abaixavam muito o som nesta hora da noite, como uma forma
de gradualmente esvaziar a casa. Quem é bom bebedor sabe que esta é a melhor
hora para secar cervejas com tranqüilidade, a música é suave, sem muitos
daqueles efeitos e não tem tanta gente em volta para ficar te olhando
desconfiado. Seria o lugar perfeito para terminar uma noite mal sucedida.
-Aqui.
-Aqui?
-Sim, aqui.
Ela não respondeu, nem
se atreveu a confirmar com a cabeça. Com certeza achou péssima idéia entrar
naquele lugar e pagar ainda uns 10 paus para o veado de terno e gravata, com
uma arma na cintura. Naquela época ninguém tinha grana pra nada, e se você
trabalhava com arte ai é que você não tinha nada mesmo, a parte mais
interessante de mexer com esse tipo de coisa é que você nunca tem dinheiro para
pagar o que produz.
Lá de fora eu já
conseguia ver o meu amigo sentado em um sofá encardido no canto inferior da
sala, eu até que evitaria entrar se já não tivesse pagado os 10 reais que
guardei para voltar de taxi para casa.
-E ai?
-Beleza?
-Tranqüilo.
Sentamos ao mesmo tempo
um de cada lado. Meu amigo sentiu-se desconfortável por um bom tempo com a
situação, mas logo ficou como se não tivesse ninguém além dele no recinto. Um
casal de homens rodava no saguão ao som de alguma merda dos anos 70, eu dançava
isso quando era mais novo, hoje eu só vou para as festas se for pra beber.
-Eu fodi com tudo não
foi?
-Bem, ela não vai falar
com você por um bom tempo, mas isso não quer dizer nada.
-Eu a amava. Sabia?
-Você não ama ninguém desde
que escolheu ser psicanalista.
-Eu não escolhi ser
psicanalista e nem alcoólatra.
Ele estava certo, este
tipo de situação acontece com você somente quando se menos espera. Uma vez ouvi
falar que existem tipos de câncer que chegam pelos genes, tipo informações
erradas que estavam já escritas na sua fórmula básica desde quando ainda era um
feto. Somente alguém com um gene desse pode ser errado o suficiente para se
tornar um bom psicanalista, o alcoolismo, bem, este vinha de brinde e era o que
dava o charme da coisa.
-Eles já estão fechando
e vão nos expulsar daqui a pouco.
-Vocês podem beber só
mais uma comigo? Prometo que logo depois dessa eu vou embora pra casa.
-E você vai embora como?
Porque não fica em nossa casa, temos espaço na sala e um colchão embaixo do
sofá.
-Eu tenho medo que o seu
gato me fure os olhos enquanto durmo. Eu li algo parecido com isso em um texto
do Freud e vivo assustado desde então.
-Nós podemos ficar
somente parados no meio da rua esperando o sol amanhecer, e alguma padaria abrir.
Já é bem mais tarde do que parece.
-Cara. Muito obrigado.
Vamos embora daqui.
Levantou sem muita
dificuldade e foi direto ao caixa disposto a pagar não somente sua conta como
nossas entradas. Ela foi logo atrás mancando em um pé só e tentando impedir que
pagasse nossa parte, se os dois estivessem juntos até que dariam um bom par, eu
então usaria o sofrimento da separação para me tornar um escritor com maior
peso em minhas obras ou um bêbado bem elegante. O ciúme é a acidez do vinho, o
tanino é o gosto da rotina.
Lá fora o sol já nascia
bem devagar, os barulhos dos carros haviam cessado por completo. Dezenas de
pequenos periquitos verdes como as folhas se escondiam por entre as árvores,
denunciando sua presença com o seu canto desengonçado. Uma pessoa treinava
alguns acordes tristes em um violão perdido entre os prédios. Enquanto isso,
meu amigo andava a frente catando os pedaços de vida que os raios solares
depositavam sobre as ruas, eu e ela andávamos mais atrás os ombros colados um
no outro.
-Você me devia um nascer
do sol.
-O sol devia um destes
para todos nós.
Às 6 horas da manhã, meu
amigo e nós brincávamos de gente grande nas avenidas de Goiânia. Os primeiros
carros começavam a aparecer anunciando que o novo dia seria quente, seco
e indiferente.
Para
Eloy San Carlo.
Diego
Roberto de Lima